Camila e a chuva

1998
Camila adorava dançar na chuva. Morava em Belém, onde a chuva é uma companheira constante, pontual e intensa. Camila arrumava-se para a chuva de todos os dias: Soltava o cabelo, trocava de vestido, optando por um modelo de tecido mais leve e que não ficasse transparente depois de molhado; colocava o pequeno aparelho de som que tinha próximo à janela traseira de casa, com uma fita de músicas que ia gravando das rádios que gostava de ouvir. Era um ritual que começava perto das três da tarde.
Quando a chuva começava ela descalçava as sandálias, apertava o botão play do aparelho de som e corria para dançar no terreiro atrás de casa, na companhia de um cachorro que a família acolhera, embora não mantivesse preso.
Camila era feliz desse jeito, e essa felicidade transbordava Camila e atingia quem estivesse por perto.
Após a chuva, ia, descalça e molhada, comprar peixe no mercado Ver-o-peso. Todos no mercado a conheciam e a chamavam de “Camila Encharcada”.

2012
Camila vive a plenitude de seus 20 anos. Mudou-se para Brasília, após ganhar uma bolsa de estudos na faculdade de Relações Internacionais. Quando era criança, tinha o sonho de dançar sob todas as chuvas do mundo: A garoa paulistana, a chuva das monções na Índia, a chuva fininha que cai em Londres vez por outra, até voltar à chuva do Pará, a sua chuva, a chuva que agora fazia tanta falta…

2062
Camila decidiu finalmente aposentar-se, após uma vida árdua e sem paixões. Conseguiu tornar-se uma diplomata, mas dançar na chuva transformou-se em vontade de dançar na chuva, que virou sonho de voltar a dançar na chuva, que virou nada. Virou uma mulher amarga, que fazia o que tinha que ser feito, na hora em que tinha que ser feito. Decidiu voltar pra Belém, não aguentava mais ver aqueles rostos petrificados que teve que suportar todos estes anos.
Chegou em Belém às treze horas. Chegou em casa uma hora depois.
Às três da tarde a chuva começou e Camila sentiu um arrepio e uma vontade incontrolável de se molhar. Colocou um vestido de florzinhas e foi pra chuva, dançar ao som do rádio que teimava em existir.

Dois dias depois, foi internada por causa de uma pneumonia. Todos os anos de secura foram demais para a encharcada Camila.

6 Comentários

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6 Respostas para “Camila e a chuva

  1. Perereco, melhores textos.

  2. Lucas Sousa

    Gostei do seu texto, Perereco. Sou de Belém e, realmente, a chuva é constante. Aliás, indo me molhar.

  3. Anônimo

    Um texto bonito e uma leitura que flui do começo ao fim. Gosto muito de quebra de expectativa em qualquer tipo de leitura, e seu toque final fechou com “chave de ouro”. Mais uma vez: meus parabéns! Continue sempre escrevendo.
    Espero um dia poder comprar um livro seu; se bem que será meio difícil encontrá-lo pois aposto que seu editor não deixará que você coloque como autoria de “perereco” (risos).
    Sou seu fã, abraços.

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