Ele sempre saía cedo pela manhã para ir trabalhar. Mochila do notebook, pasta embaixo do braço, camisa para dentro da calça. Antes de cumprir sua jornada diária, ela preparava-lhe o café da manhã e se despedia aos beijos na porta do apartamento esperando o elevador chegar. Trocavam acenos até a porta se fechar para o elevador descer. Ele ia embora, ela suspirava.
Merecido foi que ganhou um dia de folga no trabalho em troca das horas extras cumpridas até então. Acordou mais tarde do que o habitual e pegou a mesa do café já posta. Molhando o pão no café enquanto lia a página de esportes – começava o jornal sempre pelo caderno de esportes -, eis que surge sua mulher já vestida para sair. Deseja bom dia e é desejado. Beija e é beijado. Elogia sua mulher que é bem bonita.
Saía para fazer compras no shopping com a mãe. Enquanto ela esperava o elevador chegar ficou na porta para acenar quando a porta se fechasse. Disse que a amava e que aproveitasse o passeio. Ela mandou um beijo de volta. Houve um silêncio. Ela olhou o botão do elevador ainda aceso. Ele olhou para os pés. Levantou a cabeça e sorriu para a mulher. Ela sorriu de volta. O elevador chegou. A porta abriu. Ela ia embora, ele engoliu em seco.
Fechou a porta de casa assombrado pelo tempo que o elevador demorou a chegar. Percebeu naquele momento como era a vida dentro de seu próprio lar numa manhã de um dia de semana. Sons que não lhe eram familiares como o da construção do prédio ao lado. Cores intensas como a do sol da manhã que prometia o anúncio dos classificados. Cheiros como o da carne assando misturado com o refogado do arroz na cozinha do vizinho.
Era como se tivesse se despedido de uma mulher desconhecida e tivesse entrado na casa errada.
O desespero bateu forte. O coração disparou e as mãos suavam. Uma sensação desagradável lhe atingia naquele momento. Poderia descrever como o medo que vinha após um susto. Um medo de levar outro susto quando o corpo ainda estava crispado em pânico.
Os cabelos do pescoço ainda estavam eriçados quando se virou da porta para a sala que se encontrava mais escura. O janelão que dava para a rua não estava fechado, mas diminuído. Correu até a janela e só conseguiu colocar o rosto pelo buraco que ficara. Sentiu-se olhando pela escotilha de um navio. Tirou rapidamente a cabeça temendo que ficasse presa.
Olhou depressa ao redor para a sala. O sofá, a televisão, a estante de livros e enfeites. Tudo parecia normal. Pegou um porta-retrato com a foto de uma bonita mulher morena posando junto a um avião monomotor. Suando nervoso, acreditava ter ficado louco. Sua mulher não era morena nem nunca chegou perto de um avião. Largou a moldura no chão e seu vidro trincou. Numa outra foto, uma pose do time de hóquei do exército vermelho soviético. Jogou longe, bateu na parede. O vidro se fez em pedaços.
Pegou os livros e folheando o primeiro, percebeu que estava em branco. Nem na capa havia nada escrito. Assim como todos os outros nas prateleiras. Começava a arremessar livros pela sala quando passou a mão no seu chaveiro. Ia sair daquele jeito mesmo. Só de shorts do pijama. Precisava sair dali, precisava correr.
Tentando abrir a porta que o desespero bateu mais forte. Nenhuma das chaves encaixava na fechadura. Aquele era seu chaveiro da sorte desde a sétima série. Não podia falhar agora. Tentou gritar e não lhe saiu nenhum som. Nunca se sentiu tão sozinho. O teto do corredor da porta lhe espremia a cabeça. O cômodo estava diminuindo. Saiu engatinhando quando uma parede se fechou atrás de si.
Correu para o telefone da cozinha que apenas tocava uma canção de vaudeville. Nada de linha. Olhou para a mesa do café que deixara há instantes e viu que seu jornal estava todo azul. Na sua xícara brotara uma orquídea. E nos seus olhos várias lágrimas.
Dentro do quarto do casal percebeu que a porta que bateu com o vento não se abriu mais. Da janela não podia olhar porque seu vidro estava preto. Não conseguiu quebrá-lo nem arremessando o criado mudo. Virou a penteadeira (que sua vó chamava de toucador) no chão. Arrancou a persiana da parede e tirou o colchão da cama.
Arranhou a porta em total descontrole. No auge, chorando, não ouvia a própria voz. Ele chorou ajoelhado entre os destroços do quarto. Prometeu ser uma pessoa melhor.